Um jornalista italiano costumava me dizer que, às vezes, deveríamos temer mais certos mortos do que os vivos. Os mortos, de fato, não se pode
voltar a matar, enquanto sua memória, sua força de denúncia, seu legado ainda continuam vivos. Nos julgam e nos perseguem.
O pesadelo que vive hoje, por exemplo, o senador eleito
Flávio Bolsonaro, o filho mais velho do presidente da República, me fizeram lembrar daquele amigo distante.
O jovem Flávio é hoje objeto de investigação por suspeita de ter estado supostamente envolvido, quando era deputado estadual do Rio de Janeiro, em maracutaias de corrupção e obscuras amizades com milícias criminosas através de seu assessor e motorista oficial, o
ex-policial militar Fabrício Queiroz, amigo de sua família desde 1980, em cuja conta bancária foram registrados movimentos milionários muito acima de suas possibilidades financeiras.
O “escândalo Flávio”, como já é conhecido, e que é um espinho no início do Governo presidido por seu pai, se complicou significativamente ao ter aparecido em seu caminho a
sombra do assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, que comoveu o Brasil e cujos culpados ainda não foram identificados. É como se a jovem ativista feminista tivesse se levantado do túmulo para intervir no assunto.
Nas investigações levadas a cabo há quase um ano para descobrir os responsáveis pelo assassinato de Marielle apareceram os rastros de velhos amigos do senador eleito, hoje supostos responsáveis e executores do crime. Entre os apontados como possíveis suspeitos do assassinato da feminista aparece, por exemplo, o ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Adriano Magalhães da Nóbrega, de 42 anos, hoje fugitivo. Sabe-se que a mãe e a mulher do temido e suposto assassino de Marielle figuravam até alguns meses atrás como assessoras do deputado Flávio, enquanto seu outro assessor e motorista, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, é amigo de longa data de Magalhães, também chefe do temido Escritório do Crime, que reúne matadores especiais que agem a soldo e em seu nome.
É como se Marielle, desde o além, tivesse começado a desfazer o novelo de uma trama cujo objetivo ainda desconhecemos e da qual o presidente Bolsonaro queria se desfazer o mais rapidamente possível para evitar turvar seu Governo. Agora, por exemplo, se lembra de que quando a ativista social foi assassinada Flávio foi o único deputado do Rio de Janeiro que se recusou a apoiar a condecoração póstuma da medalha Tiradentes a Marielle. Hoje justifica seu gesto dizendo que a então vereadora de esquerda não tinha se destacado especialmente. Caberia perguntar por que então acabaram com sua vida se era tão insignificante.
No entanto, já em 2003 e 2004, o então deputado estadual havia condecorado duas vezes Magalhães, hoje suspeito do
assassinato de Marielle, por “seu brilhantismo e galhardia”, e até lhe havia concedido a máxima condecoração, a Medalha Tiradentes, que negaria à feminista depois de assassinada.
A verdade é que Marielle, no momento em que foi assassinada era uma lutadora contra a violência dos esquadrões paramilitares das milícias, que, embora nascidos para se contrapor aos traficantes que assombravam as favelas, acabaram se tornando, e continuam sendo, tanto ou mais cruéis e perigosos que os traficantes de drogas. E Marielle significava naquele momento a antítese da filosofia bolsonariana e sua visão dos diferentes. Era negra, feminista, lésbica, casada com uma mulher, defensora dos
direitos humanos, da esquerda radical e ao mesmo tempo feliz e de bem com a vida e inimiga declarada das milícias.
Justamente daquelas milícias da favela do Rio das Pedras, na zona oeste do Rio, onde dominam o território. Hoje se sabe que a grande maioria dos votos dessa região serviu para eleger Flávio como senador. No ano passado ele considerou que Marielle tinha menos méritos para receber a Medalha Tiradentes dos que atribuiu anos atrás ao seu hoje provável assassino.
O filho do presidente sempre manteve uma visão romântica das milícias do Rio como defensoras dos perseguidos pelos narcotraficantes nas favelas. Seu pai, hoje presidente, quando ainda era deputado federal em Brasília, ia mais longe do que ele. Chegou a elogiar as milícias por sua missão como “grupos de extermínio” com estas palavras: “Enquanto o Estado não tiver a coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será bem-vindo”. Foi também o único candidato à presidência que não se manifestou sobre o assassinato de Marielle.
É possível que, tendo em vista que a ativista de direitos humanos se revirou perigosamente em seu túmulo para perturbar os sonhos do pai e do filho, estes estejam arrependidos de não terem sido mais condescendentes com a jovem feminista e mais solícitos para descobrir seus assassinos. E o pior, como dizia meu colega jornalista italiano, é que já não se pode voltar a matar os mortos.
FONTE: EL PAÍS
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